domingo, 26 de abril de 2015

O Nepal e eu

De repente, por conta do terremoto, vem o Nepal na minha mente. Eu poderia pensar na minha prima Flávia, a única pessoa que conheço que já esteve lá, ou numa música meio tosca do Som Imaginário que dizia que no Nepal tudo era muito barato. Mas não. Lá vou eu em recordações antigas, no meu tempo de morador da Barra Funda.

Eu tinha um vizinho, da minha idade, que gostava muito de estórias de lugares distantes. Nepal, Tibete, Butão e adjacências. Éramos crianças de uma época que até televisão era algo raro. Pois bem. Ele me trouxe uma revista que trazia uma reportagem sobre a coroação de um rei nepalino. Era algo de muita suntuosidade. Ouros, diamantes, elefantes , veludos. Mas a revista contou que as ruas , para que o rei não visse qualquer sinal de pobreza ou desarmonia, foram desinfetadas , os mendigos expulsos e os cães , coitados, devidamente envenenados.

Danem-se os mendigos, disse meu amigo. Mas matar cães , isso é demais. E , imediatamente, arrancou uma folha do caderno e escreveu uma carta enfática para o rei. Ele, dizendo-se súdito, mostrou a sua contrariedade , mas , no final, admitia-se ainda súdito.

Fomos até o correio, uma agência que ficava dentro de um supermercado.  No envelope, o destinatário era o próprio rei, o endereço era o palácio , a cidade , Katmandu . E o remetente era o meu amigo da Barra Funda. E eu, com a ingenuidade dos oito, nove anos de idade, perguntei-lhe como seria possível alguém no Nepal ( e eu nem sabia onde era isso ) entender a nossa língua. Meu amigo riu e disse que o rei contava com tradutores de todas as línguas.

Bem, na hora de selar o envelope foi uma luta. O atendente olhou uma tabela e colocou o preço comparável a uma carta até o Japão, o que era bem caro. Mas meu amigo pagou com uma certa satisfação. A causa era justa .

Claro, nunca houve resposta. Soube que esse rei foi morto anos depois por um ataque de loucura do irmão. E agora, vem essa ira vulcânica. Pensando bem, saber de terremotos distantes é algo que cada vez mais somos cientes , por conta dos meios de comunicação e da internet. E sempre temos uma certa inquietude, um sentimento de dor, mas passageiro, infelizmente. Mário Quintana, num poema , disse que por mais que haja terremotos na China, nossos calos doem mais.

É verdade. Se não fosse a minha saudade aos meus tempos de Barra Funda, os escombros do Nepal
já teriam sido substituídos.por escândalos e resultados de campeonatos. Mas acho que , já que a carta do meu amigo não voltou, ela deve estar ainda numa secretaria , esperando um tradutor. Ou num prédio destruído . Ou , o que seria ainda pior, no esquecimento do meu amigo , tão indignado à época.

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